2018: não se desesperar

 

Ilustração: André Catoto

Notícias

Há dois ou três anos mais ou menos a vida é assim (em looping):

Checo as notícias, fico chocada, me indigno, checo as notícias, abro o facebook, não trabalho, checo as notícias, me deprimo, falo com uma amiga, melhoro, vou a uma manifestação, leio mais textos sobre política, compro pão na padaria, posto uma foto no instagram, olho pela janela, acompanho brigas de facebook, me deprimo, penso em renovar meu passaporte, vou a outra manifestação, me canso de ir a manifestações, danço em uma festa,  perco as esperanças, penso em sair do facebook, me distraio, leio um livro, esqueço que vivo no Brasil, sorrio para um bebê desconhecido, falo com um amigo, decido tomar um sorvete, melhoro, checo as notícias, fico chocada, me deprimo, checo as notícias.

O tempo vai se movendo estranho, e as coisas acontecendo como se caíssem de um conta-gotas, enquanto corto das unhas, escovo os dentes, enquanto uma folha cai da árvore e o cabelo cresce. Então o fico chocada é aos poucos suprimido da rotina (talvez passe-se diretamente ao me deprimo).

Lugar comum

Não se desespere, digo (hoje há democracia, amanhã não há democracia, depois de amanhã é domingo e segunda ninguém sabe o que será). Então peço um café depois do almoço (e essa democracia, ela um dia existiu de fato?). Me vejo na tela do celular. Meu cabelo já cresceu (ainda bem, porque da última vez cortei demais). Há muita gente, faz calor, olho para o teto. Na mesa ao lado, duas moças que se parecem não param de falar (nos últimos anos tantas palavras foram ditas tantas vezes e foram ficando gastas; democracia é uma delas). Na televisão, vejo a imagem de uma montanha de concreto retorcido no Largo do Paissandu, onde antes havia pessoas.  Vejo também, da janela, um garoto de boné passar ausente pelo muro que diz Marielle presente. Uma mulher percebe a sacola de supermercado furada e agora abaixa-se para pegar a lata de ervilhas que saiu rolando. Vou pagar a conta, preciso caminhar, devia ter pedido cerveja (outras palavras gastas: corrupto, corrupção, golpe, querida, supremo, ladrão, pacto, pato, nacional, temer, fora, panela, excelência).

(Não sei como dizer o que devo dizer sem usar palavras gastas) (O Brasil está se transformando em uma palavra gasta) (O Brasil está se transformando em um clichê do Brasil) (O Brasil está se transformando em uma velha loira com laquê no cabelo, perfume muito doce e camisa da seleção). (A copa do mundo ainda não começou; o hino está tocando ao fundo).

Homens de verde

Quando meus pais nasceram havia um governo democraticamente eleito; depois instalaram-se generais. Meus pais e meus tios participaram do movimento estudantil e foram detidos algumas vezes. Foi uma época horrível com toda certeza. Ainda assim, às vezes invejo a energia e a crença que tinham no projeto pelo qual arriscavam tanto. Hoje não vislumbro muitos projetos possíveis. E as coisas estão mais confusas: os inimigos são seres mais difíceis de identificar, não estão vestidos de verde-militar, quepe e botas de cano alto. São transparentes.

Faço perguntas à minha mãe sobre as vezes em que foi detida e ela acha estranho. Tento, de forma excêntrica, recuperar a história da minha família na história do meu país (em dez minutos de conversa).

Ela me conta da invasão militar na Puc em 1977, durante uma assembleia estudantil, das bombas de gás, da correria, do medo de ser pisoteada, e de depois perder um pé do tamanco na escada. Era um tamanco azul marinho do tipo babucha, do qual gostava muito, mas pensou que seria o tamanco ou ela, então o deixou para trás e acabou sendo presa com um dos pés descalços. Passou a noite com uma quantidade enorme de estudantes num quartel, viu, de passagem, uma sala macabra com instrumentos de tortura e esperou para ser interrogada em uma sala com uma geladeira marrom. No dia seguinte a soltaram. Então voltou à Puc, de chinelos, para procurar o tamanco perdido na escadaria, mas não o encontrou.

Termino de escrever e desconfio que esteja misturando os relatos. Ligo para ela e confirmo que a história da geladeira marrom foi da outra vez em que foi presa, provavelmente em 79, no DOPS, após ser pega pichando um muro (que estranho é imaginar sua mãe pichando muros).

Diálogo surrealista com a minha mãe:

– E você sentiu medo?

– Sempre me lembro daquela geladeira marrom. Até hoje tenho trauma, não posso ver geladeira marrom.

– Mas você viu uma geladeira marrom outra vez na vida?

– Acho que naquela época era mais comum geladeira marrom. Não sei, não me lembro.

– Eu nunca vi uma geladeira marrom.

Homens de bronze

Quando eu tinha seis anos, votou-se pela primeira vez para presidente, após o período militar. Eu e minhas primas entramos em uma espécie de guerra contra os meninos da rua que atiravam panfletos do Collor no quintal da casa da minha tia. Eles sabiam que gostávamos do outro candidato. Tínhamos ganhado cada uma um fantoche do Lula após algum comício. Brincávamos de debate televisivo e fazíamos apresentações que obrigávamos os adultos a assistirem. Eles riam muito. Uma boneca careca era o Enéas (ou talvez isso tenha sido em alguma outra eleição).

O Lula perdeu dessa vez. Meu avô acreditava que se ele ganhasse teria que dar um quarto da sua casa para um pobre (esse mesmo avô mais tarde passou a votar nele ou em quem ele apoiasse até o fim da vida). Também ouvia na rua que era ignorante, analfabeto e havia cortado o próprio dedo para não trabalhar. Viver no Brasil sempre foi ter que observar o ódio que essa pessoa despertou em uma certa parte da população.

De lá pra cá, aconteceu muita coisa que não cabe nesse texto (Eliane Brum já contou tudo aqui). Hoje Lula está preso, acusado de corrupção passiva. Um procurador citou Dostoiévski para justificar o aumento de sua pena, ao firmar que ele é de carne e osso, não de bronze.

Eu estaria satisfeita se acreditasse que combatem a corrupção, e não outra coisa. Se não soubesse que se segue e se seguirá praticando corrupção. Se não soubesse que Lula não é de bronze e por isso está preso, enquanto outros, esses sim, feitos de matéria metálica muito reluzente, estão aí tocando ela mesma, a corrupção. Se suportasse ouvir ou escrever mais uma vez a palavra corrupção. Quero apagar a palavra corrupção e trocá-la por um sinônimo qualquer, talvez peculato, corrompimento, corruptela.

Como não se desesperar (uma lista)

Ficar em silêncio deitada no chão do quarto; abrir a janela e gritar, se for preciso (e se achar que não vai assustar demais os vizinhos); não se esquecer, não se habituar; respirar fundo (pesquisar a técnica da respiração quadrada); mudar de assunto (falar sobre colesterol ou sobre o urso pardo da Sibéria); tomar sorvete; comprar uma raquete para matar mosquitos; fazer piada com o Temer e com o Gilmar Mendes; olhar nos olhos de uma pessoa que diz: não é? e responder não com lentidão (apesar da minusculosidade da palavra não) (apesar da inexistência da palavra minusculosidade) e suportar as pessoas te olhando na padaria (elas acham muito estranho); nunca (lembre-se: nunca mesmo) ler comentários na internet.

Escrever este texto sem pé nem cabeça, um pouco cansado, um pouco gasto.

 

[Crédito da ilustração: André Catoto]